A teoria do sapato

Eu ganhei uma sapatilha muito linda de aniversário. Rosa, bico redondo, sem nenhum adorno, de couro. Linda. Expressa totalmente o gosto da pessoa que me deu e combina tanto comigo que acho que eu mesma não teria feito escolha melhor.

O problema é que essa sapatilha machuca meu calcanhar (porque é nova e de couro e ainda não laceou completamente). Eu vou ter que usar assim mesmo até pegar o formato do meu pé, mas até lá vai doer um pouquinho. Eu insisto porque sei que cada vez que eu usar vai doer um pouquinho menos e porque é uma sapatilha realmente bonita e não dá pra ficar descartando assim. Vale a pena, apesar da dor. E, com o uso, a dor passa de insuportável pra alguma coisa com o que eu consigo lidar e que é - de um jeito bem torto - até meio prazerosa.
O mais legal é que essa coisa da dor serve pra quase tudo, né? Eu tô falando de sapatos, mas eu poderia falar da minha família, por exemplo. Meu pai, minha mãe e eu somos o trio mais legal desde o Trio Mocotó. Minha mãe é a emoção, meu pai é a razão e eu sou a coragem e disposição. A gente se completa.
Meu pai MACHUCA (não fisicamente porque a única vez que eu apanhei na vida foi da minha vó, não dele...). É um cara absurdamente sério e direto e sem nenhuma sensibilidade na hora de expressar sua opinião. Quando ele tem que falar usa as palavras mais chocantes justamente pra você se impressionar e não esquecer o que ele tá falando. Incontáveis as vezes que nós paramos de conversar por um tempo por causa dos nossos debates infindáveis.
Mas, por mais que ele seja brutão desse jeito, eu nunca vi meu pai se enganar sobre o que ele fala. Nunca. De verdade. Sempre que meu pai solta essas verdades fulminantes rola um "conselho bônus" junto, e o conselho sempre dá certo. É a dorzinha que machuca, sabe? Mas compensa. É um caminho que gera frutos.
Minha mãe é uma banana. Cheia de dar segundas chances, distribuir amor, ajudar os outros, priorizar o próximo ao invés de si mesma... E só se ferra. Porque não é todo mundo que tem a sensibilidade e a gratidão que deveriam ser típicas quando você recebe ajuda de alguém... E, eventualmente, ela entra em atrito com a gente porque ao priorizar o lado de fora ela se esquece de nós (meu pai e eu). Novamente a dorzinha que machuca, mas que no fim a gente entende e leva como lição de dedicação sem esperar nada em troca (e porque minha mãe é mesmo muito legal e não tem como ficar brava com ela por muito tempo, nem quando ela monopoliza a sala pra jogar videogame).
Então eu me acostumo com as dorzinhas que minha família causa e até sinto um ligeiro prazer com elas, porque minha mãe pode ser uma frouxa, mas não consigo achar ninguém que não goste dela, e meu pai pode ser um brutamontes sem papas na língua, mas dá um orgulho maior ainda ao saber que ele é honesto, integro e tem o dom de sempre se sair bem das coisas sem sacanear e trapacear ninguém. Eu entendo e aceito meus pais desse jeitinho. Minha dorzinha que machuca mas que combina perfeitamente comigo.
Mas nem vale só pra família isso. Se você parar pra pensar bem, TODAS as pessoas tem um lado irritante ou algum defeito que te dá vontade de cometer um homicídio. O que pega, basicamente, é decidir de quais pessoas valem a pena agüentar o defeitinho até ele virar uma piada ou o prazer esquisito que eu falei ali em cima. O que pega é notar qual é o sapato que vai lacear e deixar de doer ou qual você tem que trocar porque seu pé pode necrosar caso você não o faça. E, acima de tudo, o importante é notar qual pessoa simplesmente não serve, não combina contigo, não dá, desencana e troca por um all star que é confortável e fica bem no pé de qualquer um.
A vida é basicamente isso: Já que o chão é quente e você não pode sair por ai sem sapato, já que a vida é dura e você não consegue viver sem pelo menos uma pessoa de quem goste em quem confie e que ame... É melhor escolher de uma vez por todas uma que sirva. Que combine. Que valha a pena agüentar o período do sapato não-laceado, porque você sabe que é algo que vai te acompanhar por um (bom) tempo.

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